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LIBERDADE OU SEGURANÇA: GATOS SOLTOS NO INTERIOR MEXEM COM NOSSAS CERTEZAS

No interior, o costume local de criar animais livres se contrapõe aos avisos de ‘desaparecido’ que se acumulam.

19/02/23

Por: Patrícia Vidal

Reprodução: gato livre em cima de telhado

Há alguns meses me mudei para um condomínio no interior de São Paulo. Tudo tem caído muito bem: as pessoas, ritmo, silêncio e a trilha sonora de vacas, galinhas e pássaros que desconhecia. Quase acostumei com o passeio noturno de um gato pelo telhado. Às vezes ele corre! Invariavelmente move telhas do lugar, resultando em goteiras inéditas a cada chuva. É um gato de ninguém, me explicou uma vizinha. Aquilo meu doeu tanto! Passei a dar ração e água para ele, longe de casa, para poupar minhas gatas.


Noite dessas, acordei com o debater de grandes asas sobre o teto. Quanta angústia! Torci para que ele tivesse abatido sua presa com destreza, rapidamente. Encontrei conforto na lembrança de ter lido em algum lugar que a maior taxa de sucesso entre os caçadores felinos é a dos gatos. Felizmente, na manhã seguinte o pedreiro, acostumado à vida no campo, foi gentil de retirar os restos mortais do telhado e enterrar junto com uma perninha que encontrou no quintal. Era um pombo do mato. Suspiro. Nossos universos se cruzaram com violência. Lembrei do livro “Escute as Feras” da antropóloga francesa Nastassja Martin, sobrevivente do ataque de um urso. Qual é possibilidade de convívio saudável entre nós dois, no meu/seu território? Sim, eu sei que o gatuno alfa considera que toda a quadra é dele.


Outra vizinha mandou mensagem logo cedo perguntando se eu havia visto a gatinha dela. Senti um frio na barriga. Faz dias que Dada andava sumida da minha varanda. Ela foi a primeira felina que vi no jardim, quando resolvi me mudar para cá. Sua doçura me conquistou. De invasora, passou a ser visita querida arejando os dias atarefados. Graças a ela, me acostumei com o trânsito de peludos alheios pelo terreno. Logo soube que o costume local é criar os gatos soltos.


Semana sim e semana não, os avisos de ‘desaparecido’ se acumulam no grupo de moradores. Não somente gatos, mas tartarugas e cães fujões também. Na chegada ao novo lar, conheci duas tutoras que perderam seus gatos e, aflitas, pediam ajuda para encontrá-los. Uma delas teve o bichano de volta 32 dias depois, magro e machucado.


Voltando à gatinha Dada, após semanas de procurá-la e enviar um bocado de energia, ela apareceu quando eu voltava de uma caminhada, no início da rua onde moro. Estava gorda e carinhosa como sempre. Alguém estava cuidando bem dela! Avisei sua tutora, que estava por chegar. Fiquei com ela, matando as saudades, enquanto sua humana não chegava. À medida que o tempo passava, foi ficando inquieta e se dirigindo ao portão da casa estranha para passar pela grade. Segurando-a no colo, senti que não queria voltar para seu lar. Entrei em conflito, o que só piorou quando a entreguei para a tutora. A gatinha claramente não queria ir com ela. Senti tê-la traído. Pedi perdão mentalmente, torcendo para que fugisse novamente se aquela família não fosse boa para ela.


Tudo isso tem me feito refletir se a vida que proporcionamos aos nossos animais domésticos é boa, de fato. Se tem sentido para ELES.


Pensei no significado da palavra tutor: aquele que ampara, protege, defende; guardião. Como calibrar essas atribuições? Com base em quê? Lembrei do modo coletivo dos indígenas cuidarem de suas crianças. Como seria se os animais pudessem circular livremente, escolhendo com quem querem estar por um tempo, por gosto, por uma missão a cumprir, para aprender ou evoluir? Abriríamos mão de nosso apego?


Como nossos companheiros animais comparariam o enriquecimento ambiental artificial urbano, que com tanto zelo os humanos lhes oferecem, versus as aventuras de estarem soltos, caçando, disputando territórios e...arriscando a própria vida, na natureza?


Antes que a patrulha venha atrás de mim, esclareço que sou a favor de posse responsável e de casa telada, sem acesso à rua!


Entrar em contato com essa forma de criar gatos me fez pensar algumas coisas. A liberdade dos bichos vale o desespero dos tutores? Vale o luto ambíguo da ausência sem desfecho?  Qual o valor e o custo da liberdade? Qual o valor e o custo da segurança? Reflito pela vida deles e – por que não – pela nossa também.

Patrícia Vidal

Psicóloga especializada em vínculos e luto por perda de animais domésticos.

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