O QUE ACONTECE QUANDO CÃES E ÉGUA SÃO LEVADOS PARA DESPEDIDA DA RAINHA
“Adeus” interespécie tem se tornado mais natural e funeral de Elizabeth deu visibilidade para outro luto não legitimado: o dos animais pelos tutores
09/10/22
Por Patrícia Vidal
Égua Ema levada para despedida de Elizabeth II / Foto: reprodução BBC
A relação da rainha Elizabeth II com os cães voltou para os holofotes após a morte dela, no íncio de setembro. E tudo o que vi a respeito estas semanas remeteu às vivências de vários tutores enlutados. A maioria acredita que será recebida pelos pets falecidos quando morrer. Isso os conforta. Enquanto isso, pedem que o amado animal venha visitá-los em sonho ou recorrem às comunicações telepáticas e cartas psicografadas para manterem o contato.
Elizabeth II deixou de criar os patudos quando decidiu que não gostaria de deixá-los “órfãos”. Pacientes relatam aflição com a perspectiva de deixar os pets desamparados. Seja porque estão envelhecendo ou porque se encontram frágeis de alguma maneira. Há pouco tempo no Brasil, está disponível o serviço de seguro de vida para os bichinhos. A empresa garante que na falta do tutor, o animal será tratado da mesma forma com que estava acostumado, em um local paradisíaco. Basta o tutor preencher o formulário com as preferências e rotinas dele. Na falta de uma pessoa designada para cuidar dos pets órfãos, como o príncipe Andrew que assumiu os 2 últimos cães que acompanharam Elizabeth II, o seguro pode ser uma solução. Participei da busca por adotantes para os três gatos de uma querida amiga que faleceu há alguns anos. Ela me confiou essa tarefa. Foi bem complicado!
Voltando à soberana, a paixão pelos Corgis de Pembroke surgiu quando era menina. O pai dela a presenteou com uma filhote da raça quando tinha 18 anos. Era Susan, de 2 meses, traquina, que inclusive foi escondida na lua de mel da tutora. A maioria dos 30 cães que a rainha teve foram descendentes de Susan. A chegada marcou a entrada para a vida adulta, sendo fiel companheira em momentos profundamente marcantes emocionalmente, que logo sucederam: o casamento, a chegada do primogênito, a morte do pai e a coroação. O pesar pela perda de Susan foi publicamente manifestado pela rainha. Ela escolheu pessoalmente os dizeres da lápide da amiga canina. Não consigo dimensionar o impacto que essa perda representou. Quanto apoio emocional certamente Susan proporcionou na transição da vida anterior para a de majestade!
Não é raro os pacientes contarem que o pet chegou em um momento crucial e, às vezes, significarem a continuação do vínculo com alguém. Como a morte do pai afetou a conexão da rainha com Susan? Como o laço com o pai foi atingido com a morte da cadela?
Ter um bichinho de estimação, especialmente cães, pode representar um rito de passagem para a vida adulta. Algumas pessoas duvidam da própria capacidade de cuidar adequadamente do animal. Outras encaram os medos e crescem com a experiência. Sem dúvida, um ensaio para a maternidade ou paternidade de humanos.
A morte da monarca trouxe à tona outros lutos da casa real britânica, por parte da imprensa. Em especial o de William, filho da princesa Diana. A reportagem da Folha de S. Paulo (18/9/22, pág. A16) mencionou o documentário em que o príncipe fala da trágica morte da mãe: “Não há nada assim no mundo. É como se um terremoto tivesse atingido sua casa, sua vida, tudo. Sua mente se quebra completamente. Demorou para eu perceber a magnitude de tudo aquilo”. A descrição lúcida e dolorosa descreve a ruptura de um vínculo que representa estrutura, segurança e aconchego. Foi uma surpresa lembrar que parte dos tutores enlutados que me procuram descrevem a perda do animal como altamente desorganizadora. Um terremoto importante e persistente. Isso acontece quando o pet é o ponto focal da vida de um humano. Um luto assim não é exagero e precisa ser cuidado.
Os bichos sentem saudade - Muitas pessoas se comoveram com a ida dos cães Muick e Sandy e da égua Emma ao funeral para se despedir de Elizabeth II. Torço para que o gesto sensibilize para outro luto não legitimado: o dos animais por seus tutores. A primeira vez em que vi um cão ser levado ao velório foi quando iniciava a especialização em luto. Era 2017 e Kid Vinil, tinha morrido. A foto da reportagem foi arrebatadora: Cosmo, seu labrador tinha o focinho em seu rosto no caixão. Que intenso! Belo. Triste! A cada dia, essa despedida interespécie tem se tornado mais natural, bem como o reconhecimento do animal de estimação como membro da família.
A rainha trouxe visibilidade para a importância do vínculo dos humanos com os animais e isso constitui um legado inestimável. Ela citou em um discurso o conceito do psiquiatra Colin Murray Parkes: “luto é o preço que pagamos pelo amor.” A experiência humana fundamental e instintiva de nos vincular e sofrermos pelo rompimento do vínculo nos aproxima de todas pessoas na Terra. Sejam nobres ou plebeus!
Patrícia Vidal
Psicóloga, especializada em vínculos e luto por perda de animais domésticos, e apaixonada por gatos.